Mary del Priore é uma das principais historiadoras do Brasil. Com mais de 50 livros publicados, a professora carioca já vendeu milhares de exemplares e foi uma das responsáveis por levar os livros de história para além do ambiente acadêmico, conquistando o público com textos agradáveis.
Seu lançamento mais recente foi o livro "As Vidas de José Bonifácio" (Editora Sextante, R$ 44), abordando as diversas facetas do Patriarca da Independência.
Nesta entrevista ao Destak, Mary falou sobre o processo de independência do Brasil, defendeu a importância do estudo da história, criticou a relação do governo de Jair Bolsonaro com a educação pública e fez uma análise das crises permanentes do Brasil.
Qual a real importância de José Bonifácio para a independência do Brasil?
- José Bonifácio foi um dos muitos protagonistas do movimento de emancipação, que vinha se construindo, há tempos, pelas elites brasileiras. Ao contrário do que muitos pensam, ele desejava manter os laços com Portugal, onde passou 36 anos de sua vida, até o momento em que compreendeu que tal opção, seria a ruína do Brasil, levando inclusive à desordem que ele viu acontecer na França, durante a Revolução. Ele não foi a única estrela do movimento e ombreou com gente do calibre de Ledo, Padre Januário, Cipriano Barata e Feijó. Foi um dos muitos que participou de um momento extremamente convulsionado, que não se sabia aonde ia acabar. A própria instabilidade de D. Pedro frente à situação, ora querendo se manter fiel ao Reino, ora compreendendo que tinha a chance de liderar um novo império, ajudou nesse caldo de interrogações. Bonifácio foi, sim, pioneiro em se autoproclamar "patriarca da Independência". Num golpe que hoje chamaríamos de midiático, fundou um jornal, "O Tamoio", onde se promoveu, se autoentrevistou e se autoproclamou o responsável pela independência do Brasil. Foi um pioneiro da fake-news.
O que a sociedade pode aprender com a história?
- História não é só uma disciplina. Ela é também o amor ao passado, aos ancestrais, o interesse pelo patrimônio e à memória. Tais laços asseguram a continuidade de um povo, de uma nação e fundam sua identidade. Ela não é só uma coleção de datas e fatos, mas a capacidade de relacioná-los. É importante o conhecimento da história, não para encontrar fórmulas milagrosas para os problemas presentes, nem para ficar repassando aspectos dolorosos que foram vividos, mas para encontrar inspiração para uma existência individual e coletiva. Gosto de dizer que nunca saberemos quem somos, se não soubermos quem fomos.
Como vê a relação do governo Bolsonaro com a educação, as universidades públicas e com a área de humanas?
- As áreas de humanas estão em cheque no mundo todo. Se antes intelectuais iam para as praças, prever o futuro, hoje, eles estão na televisão ensinando fórmulas de autoajuda. Num mundo que caminha para novas formas de trabalho, baseados em informática e eletrônica, é precisa achar meios que permitam às disciplinas humanas de participar das transformações sociais e tecnológicas. E isso não se conseguirá com aulas de decoreba. Não há dúvidas que a gestão de algumas universidades tenha gravíssimos problemas, mas afrontar o setor de educação com insultos é no mínimo uma selvageria. A falta de carisma e de conhecimento dos ministros interfere diretamente no diálogo entre o Executivo e o complexo mundo da educação. E nele, é bom que se lembre, estão os nossos verdadeiros heróis: não os Tiradentes ou Bonifácios. Mas, os professores do ensino público fundamental e médio.
Seus livros dão enfoque especial à intimidade, ao cotidiano e ao lado humano dos personagens históricos. Qual a importância da vida privada para evolução da história?
- Nos últimos séculos, tanto a privacidade quanto a intimidade sofreram transformações. No início, as pessoas jamais estavam sós. Buscar o isolamento era luxo dos que podiam. Hoje, também, espaços privados estão ligados à noção de conforto. "Estar bem" significa ter seu "canto". Na intimidade podemos levantar todos os véus e nos perguntar quem somos. E quem somos? Indivíduos de muitas caras. Virtuosos e pecadores, oscilando entre a transigência e a transgressão. Em público, civilizados. No privado, sacanas. Na rua, liberados; em casa, machistas. Ora permissivos, ora autoritários. Severos com transgressores que não conhecemos, porém indulgentes com os nossos, os da família. Em grupo, politicamente corretos, porém racistas em segredo. Fora, entusiastas dos "direitos humanos", mas, cá dentro, a favor da pena de morte. Amigos de gays, mas homofóbicos. Finos para "uso externo" e grossos para o interno. Exigentes na cobrança de direitos, mas relapsos no cumprimento de deveres. Somos velhos e moços, nacionalistas e internacionalistas, cosmopolitas e provincianos, divididos entre a integração e a preservação de nossas múltiplas identidades. Na intimidade, miramos nossas contradições. Resta saber se gostamos do que vemos.
Com uma obra rica e vasta, a senhora é uma expectadora privilegiada da trajetória do país. Quais os maiores problemas do Brasil?
- O Brasil é um arquipélago. Cada estado com suas dificuldades, problemas, políticos ladrões e agendas específicas. No Congresso, assistimos um "coro de contrários". Será preciso uma ameaça externa para unir o Brasil em torno das mudanças necessárias? Foi assim também no momento da Independência. Acenou-se com o perigo da recolonização do país pelos portugueses. Hoje, o risco é não fazermos reformas estruturais. Penso que o Brasil tem 210 milhões de habitantes e é dotado de um tecido econômico capaz de fabricar de aviões a carros, de recursos naturais que vão de petróleo a commodities, e com a presença, até agora, de grandes empresas estrangeiras. O Brasil não tem problemas econômicos. Tem problemas políticos. E de políticos que não se empenham em resolver os problemas básicos de saúde, educação e segurança. De políticos que pouco fazem para resolver o problema de desigualdade pela criação de empregos, e, não, distribuição de bolsas. Mas com os vagabundos que elegemos, as soluções não virão em curto prazo. Está na hora de assumirmos a possibilidade de agir como cidadãos conscientes. Se todos brasileiros soubessem como a conquista do voto democrático foi difícil e sofrida, dariam mais valor ao gesto e à história.
Qual seu próximo trabalho?
- O próximo projeto é contar a história de uma rainha doce, amada pelo seu povo e cheia de boas intenções: D. Maria I de Portugal. Inúmeras perdas e mortes a conduziram a uma doença que hoje está aí: a depressão. Estudá-la foi também estudar este mal que é uma espécie de estrada triste e solitária. Ela nunca foi louca. Apenas uma mulher que não soube, como tantas, lidar com o sofrimento excessivo.
Fonte: Destak Jornal
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