Pular para o conteúdo principal

Franz Kafka e a Metamorfose nossa de cada dia

Aviso: o texto abaixo contém spoilers de A Metamorfose. Primeiro leia e se transforme em um inseto, depois volte



“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” — Franz Kafka em A Metamorfose

Que começo, não? Sem nem explicar porquê, como, quando, onde ou como, Franz Kafka nos introduz a sua obra A Metamorfose. Curto e grosso. De certo a história é muito enigmática. São lançadas ao leitor mais dúvidas do que respostas e muitas pessoas acabam o livro perdidas ou pensando “é isso? sério que é só isso?”. Se foi o caso não se sinta mal, certamente não foi o único.

Não há como dizer com toda a certeza do mundo quais foram as intenções do autor neste livro. Apenas ele tinha uma ideia clara do que ele queria passar como mensagem em suas palavras, o que deixa aberto a nós, leitores, a possibilidade de criar diversas interpretações distintas da trama. Tratarei aqui de duas que considero ais”.


Sobre o autor

Franz Kafka nasceu em 1883 e morreu em 1924 de tuberculose. Se formou em Direito na Universidade de Praga, onde pode ter aulas de arte e literatura — essenciais para o desenvolvimento de sua escrita. Em 1912, quando tinha 29 anos, escreveu A Metamorfose, mas conseguiu lança-la apenas em 1915, devido ao período da Primeira Guerra Mundial (1914–1918). O livro foi lançado no Brasil apenas em 1956, porém apenas nos anos 1960 foi mais disseminado pelo país.

A história de sua família é um pouco trágica. Seus dois irmãos mais novos, Georg e Heinrich, morreram quando Kafka tinha apenas seis anos, deixando-o sozinho com seus pais e suas três irmãs — que morreriam posteriormente em campos de concentração nazistas. O relacionamento com seus pais era um pouco complicado: sua mãe, Julie, era uma dona de casa dedicada que nunca compreendeu os sonhos do filho de virar escritor, enquanto o pai, Hermann, homem de negócios, pressionava Kafka e seu lado criativo (o que influenciou sua escrita a tratar de personagens que se rebelavam contra “pressões”).

Se quiser ler mais sobre a vida do autor, acesse esse link aqui (em inglês).


Crítica ao sistema trabalhista

Começando com as interpretações. Umas das primeiras que tive, logo de cara, foi que a obra poderia ser uma crítica ao sistema trabalhista ou capitalista. Gregor, bem no comecinho e depois de se transformar no inseto, tem apenas uma preocupação: o trem das cinco perdido. Isso foi, inclusive, um fator que me deixava com certo “ódio” no começo. Ele acorda como inseto e se preocupa apenas com o trem do trabalho? 

De verdade?

“Ah, meu Deus! Que profissão cansativa escolhi. Entra dia, sai dia — viajando.” — Franz Kafka, A Metamorfose

Então me veio à mente todas as pessoas que conheci ao longo da vida que colocam o trabalho acima de tudo. Elas não ligam para os problemas de relacionamento com a família ou como o filho está se saindo na escola. São pessoas que se desligam completamente de tudo porque o trabalho é mais importante. A pessoa vai se metamorfoseando (referência, pegou?) aos poucos, se afastando da família, assim como Gregor que, depois de virar inseto, vai gradualmente ficando mais distante da sua própria família. Ele se tornou inútil para o sustento coletivo da casa, não tem mais uma utilidade.

Há também outro detalhe que julgo ser muito importante: a figura do pai como trabalhador. Durante boa parte do livro, a impressão que temos através dos olhos de Samsa é que o pai é uma figura mais senil e limitada, no entanto, a transformação de Gregor gera a instabilidade financeira da família. O pai, sendo a figura patriarcal da casa, o pilar central, precisa fazer algo a respeito e, com seu uniforme e seu quepe, volta a trabalhar. Agora, sua figura é imponente e até mesmo juvenil. O problema é que ele não tira o uniforme em momento algum, nem mesmo para dormir — cena em que Gregor descreve o pai dormindo com certo incômodo por causa do uniforme. Seu trabalho virou sua vida. O quanto disso é verdade nos dias de hoje?

Conflito interno (nosso?)

Outra visão que tive foi de que Gregor Samsa poderia estar passando por uma espécie de crise ou que Kafka estava tentando passar a sensação disso. Um homossexual com dificuldades em se assumir para a família ou uma pessoa com quadro de depressão. Há vezes em que a família compreende e apoia. Há vezes que a família faz o completo oposto. Os pais e a irmã de Gregor, em momento algum, pensam que o psicológico dele continua o mesmo. Julgam apenas pelo exterior e ignoram completamente o interior. Outro ponto chave é que nesses momentos não há mais a possibilidade de evasão. Não há mais uma fuga.

“Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco e esquecesse todas essas tolices?” — Franz Kafka, A Metamorfose

Simplesmente não importa o porquê ou como Gregor virou um inseto. Nós não precisamos saber disso. O que importa é que a mudança aconteceu inesperadamente, assim como pode acontecer com cada um de nós a qualquer hora e qualquer lugar.

Além disso, há uma informação que encontrei. Citando uma matéria da Folha de São Paulo, “a sugestão do autor era que a ilustração da capa do livro fosse a de uma porta sendo aberta devagarzinho, com pessoas olhando para dentro do quarto, com ar de curiosidade e susto”. Depois de saber disso, ficou ainda mais enfiado na minha cabeça essa ideia de identificação do leitor com Gregor. Não seria a matamorfose, na verdade, nossas mudanças em decorrência aos nossos problemas do dia a dia?


Fonte: OBVIUS
PUBLICADO EM LITERATURA POR PEDRO ZUCCOLOTTO

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Maya Angelou: “Ainda assim eu me levanto”

Maya Angelou, figura extraordinária das letras norte-americanas, foi porta-voz dos anseios e da revolta dos negros. Amiga de Martin Luther King e de Malcolm X, a vida inteira dedicou-se à militância pelos direitos civis de seu povo. Nascendo em Saint Louis – Missouri, partindo de uma infância miserável e cheia de tropeços no Sul profundo, educou-se, para consagrar-se a duas causas: a seu povo e à poesia. Viajou pelo país fazendo campanhas onde fosse necessário; posteriormente percorreria também a África, sempre denunciando a injustiça. Artista polivalente, fez teatro, cinema, televisão, dança. Autora de livros de memórias e assessora de presidentes, soube empunhar a poesia como arma de luta pela emancipação. Selecionamos o mais famoso de seus poemas, verdadeira declaração de princípios que serve como hino de guerra da resistência à opressão e é recitado por toda parte em ocasiões públicas. Desafio ao opressor, reitera o refrão “Eu me levanto”, trazendo para o poema as conotaç...

Milton Hatoum é eleito imortal da Academia Brasileira de Letras

A Academia Brasileira de Letras (ABL) elegeu o escritor Milton Hatoum, 72, para ocupar a cadeira n.º 6 da instituição. Ele foi eleito com 33 votos de um total de 34 possíveis, em disputa que contou com outros cinco candidatos. O mais novo imortal da ABL irá ocupar a vaga deixada pela morte do jornalista Cícero Sandroni em 17 de junho deste ano. Hatoum é romancista, contista, ensaísta, tradutor e professor universitário, e nasceu em 19 de agosto de 1952, em Manaus, capital do Amazonas. Segundo o presidente da ABL, Merval Pereira, o autor " é o maior escritor brasileiro vivo e é um romancista de primeira ordem ". Hatoum morou durante a década de 1970 em São Paulo e se formou em arquitetura na Universidade de São Paulo (USP). Ele estreou na ficção com " Relato de um Certo Oriente " (1989), seu primeiro romance que levou o Prêmio Jabuti daquele ano e ganhou adaptação para o cinema. Seu segundo romance, " Dois Irmãos " (2000), ganhou adaptações para o teatro e ...

A cigarra e a formiga: uma fábula para ensinar às crianças o valor do esforço

 A fábula “A cigarra e a formiga” é uma daquelas histórias que vale a pena partilhar com os mais pequenos de casa. A sua autoria é atribuída a Esopo , mas foi posteriormente recriada por Jean de La Fontaine e Félix María Samaniego . A fábula conta a história de uma cigarra que passa todo o verão cantando enquanto a formiga trabalhava duro para reunir suprimentos para o inverno. Uma história que trata da importância da previsão e do esforço que, sem dúvida, vem a calhar para refletir sobre essa questão com as crianças. Foi um verão muito quente, provavelmente um dos mais quentes das últimas décadas. Talvez por isso a cigarra tenha decidido dedicar as horas do dia a cantar alegremente debaixo de uma árvore. Ela não tinha vontade de trabalhar, só queria aproveitar o sol e cantar, cantar e cantar. Então foi assim que seus dias se passaram, um após o outro. Um daqueles dias uma formiga passou carregando um grão de trigo muito grande, tão grande que mal conseguia segurá-lo nas costas. Ao...