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Harriet Tubman tem uma frase famosa que diz “Eu libertei mil escravos. E teria libertado mais mil, se soubessem que eram escravos!”.

Já tomou café?

Você sabe que é preto?

Não, pera! Se dê um pouco de tempo pra pensar nessa pergunta.

Harriet Tubman tem uma frase famosa que diz “Eu libertei mil escravos. E teria libertado mais mil, se soubessem que eram escravos!”. Sempre que leio essa frase, me questiono se a gente sabe que ainda é escravo!? Aí você vai me dizer “ Mas Kafunji, hoje em dia não somos mais chicoteados", “ Nós somos livres!”, “Nós somos todos iguais"... você acredita mesmo nisso? De verdade?! Eu fico aqui me perguntando sobre todas as invenções que os branc’os inventaram pra fazer a gente acreditar que isto que vivemos desde a colonização era o único caminho, a única verdade , a única vida.

E isso me faz lembrar de um trecho do filme “O nascimento de uma nação”, onde a Dona da Fazenda ao descobrir que o Nat Turner sabia ler, o leva pra casa grande e lhe dá uma bíblia. Ele tenta pegar um outro livro, mas ela o impede dizendo que aqueles não eram para pessoas com o ele e que ele deveria aprender a bíblia(na verdade trechos da bíblia que falavam sobre não se rebelar, sobre amar o seu senhor, sobre dar a outra face e ser dócil em relação ao seu dono).


O Nat Turner não só aprendeu a bíblia, como também começou a pregar para os pretos daquela fazenda, a ponto dos donos não precisarem usar de violência física para mantê-los cativos. Isso chamou a atenção de outros fazendeiros.. ora, um preto que fala pros seus iguais que não se rebelem contra quem os explora e mata, mas que “esperem no senhor"!? Quem não quer?! E esses outros senhores de escravos, começaram a pagar o dono do Nat para que ele fizesse o mesmo em suas fazendas, gerando mais lucro pro seu dono. Nat também pôde ver todo horror pelo qual seus iguais passavam nas mãos dos outros senhores, mas já estava tão entupido de todo esse lixo branc’o, que a chibata nem era mais necessária pra que ele não reagisse. Ele só foi capaz de se libertar, quando o caldo entornou pra cima dele. Quando o seu dono, que ele tanto obedecia e servia, quase o matou no tronco. Ali ele viu de fato que os branc’os são todos iguais, por mais tempo que demore pra se revelarem!

Este filme é uma ilustração perfeita de como o cristianismo, não só mas principalmente, nos faz internalizar a escravidão da mente, da espiritualidade e consequentemente do corpo.

Da mente por via do “a imagem e semelhança”: ora, se o Deus que vai me salvar é retratado tal qual o meu dono, então meu dono é meu deus. Logo não devo me rebelar. Mas ai eles perceberam que Belém é geograficamente mais próximo à África que da Europa, que era melhor pintar o Deus que eles inventaram de preto, pra que você continue cativo. Afinal “preto não se volta contra preto”, não pode se voltar contra o teu ‘igual’, então você continua cativo.

Mas a maior sacada do branc’o, foi fazer o preto acreditar que se ele se esforçar muito, ele pode ser, fazer e viver como o branc’o. A imagem e semelhança do seu dono/deus. E o meio para se alcançar este paraíso é se tornando um branc’o, no modo de agir, de falar, de pensar...só que ainda assim, seu topo do embranquecimento vai ser só a cozinha da casa grande, com trechos da bíblia que interessam aos branc’os que você reproduza aos pretos revoltos.

Pela espiritualidade: quando te tira a espiritualidade preta e te empurra uma religiosidade pra te fragmentar ainda mais. Pois alguém sem nome, sem lar, sem língua e sem alma, se agarra a qualquer coisa que dizem ser sua salvação!

Lembra do episódio de “American Gods", do Anansi no tumbeiro?! Depois do Anansi ter contado tudo o que iria acontecer com eles e seus descendentes, ainda teve um pra dizer “Mas se você queimar o navio, vamos todos morrer!”. Vocês já estão mortos! Não existe salvação preta, por via branc’a ! Pois tudo o que eles criam é para matar tudo a sua volta, inclusive nós!


E pelo corpo: bom, se sua mente acredita que você pode se embranquecer e a religiosidade te diz como, seu corpo sofrerá as consequências de não corresponder ao que é absorvido pelos outros dois meios. Seja pela auto mutilação, cirurgias plásticas para modificar os traços negroides, transtornos mentais por não se encaixar no espaço socialmente “aceito" pelo branc’o e diversas outras formas de detrimento, não aceitação e marginalização do corpo preto, através das drogas, hipersexualização, baixa estima, etc. que vão tornar o corpo preto incapaz de reagir a qualquer outra violência que ele sofra, seja física ou psicológica.

Então eu volto a perguntar: Você sabe que é preto?

Porque esse sentimento de não pertencimento que nos assola, vem justamente desse deslocamento espiritual que nós sofremos e fomos obrigados a engolir. Não há respostas branc’as, para questões pretas! Nós cultuamos a vida e não há vida preta, num caminho branc’o que eles nos empurram como verdade! Só a espiritualidade preta é capaz de reunir nossos fragmentos novamente, como na história de Ausar e Auset. Você sabe mesmo que é preto? Porque só mesmo acreditando que é um branc’o, mesmo inconsciente, que um preto pode se manter em situação escravizada em pleno 2020, porque a gente sabe que a raiz desse merdelê todo é bem branc’a e venenosa. E erva daninha se corta pela raiz!

Existe um itan, que conta que Ossain sabia o segredo de todas as folhas. Seus prós e contras, seus benefícios e malefícios, como fazer seus encantamentos, enfim... Acontece que Xangô ficou sabendo que Ossain tinha o poder sobre todas as folhas, e achou justo que este poder fosse dividido com os demais orixás. Xangô então, ordenou que Oyá fosse buscar as folhas de Ossain. Oya assim o fez e trouxe as folhas de Ossain com ela. Mas Ossain mandou que as folhas voltassem para as matas e as folhas voltaram. Oya foi de novo buscar as folhas e de novo Ossain mandou que elas voltassem. E nesse vai e volta, algumas folhas se espalharam, e Ossain percebendo que não teria todas as suas folhas de volta, aceitou dividi-las com os outros orixás, como havia determinado Xangô. Ossain dividiu um bocado de folhas para cada um e lhes ensinou o ofó, o encantamento necessário para ativar a potência positiva ou negativa de cada uma delas. Ossain ensinou um pouco para cada orixá, mas ainda detinha o segredo sobre todas as folhas!

Por mais dividido, fragmentado que nosso povo esteja, somente a espiritualidade preta tem o segredo sobre como nos reunir novamente e ativar todas as nossas potências! Sem folha não há orixá. Sem espiritualidade africana não existe o preto. Que a gente não espere o chicote estalar no nosso lombo, pra voltar a cultuar a vida! Pois se fala tanto de voltar ao culto ancestral...mas vocês ainda acreditam que esse passado é tão branc’o quanto o recheio negresco de vocês. Talvez por isso a expressão “deu branco” é associada ao esquecimento...Vocês esqueceram que são pretos! E ser preto é o que te torna forte! Ser preto e se enegrecer cada vez mais em sua espiritualidade e mente é o que vai te dar o necessário para reunir o que o branc’o destruiu em você. Se reúna. Retorne! Pois nenhum dono/deus cristão é capaz de te salvar além de você!

Texto de Kafunji Mahin Alayê Òkòtó

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